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Petite Fleur

Petite Fleur

A CULTURA DO FEIO

Tudo aponta para que estejamos a assistir ao fim de uma Civilização que foi conformando o mundo à sua imagem e o foi liderando segundo os seus conceitos por mais de dois mil anos. Á requintada e socialmente organizada civilização do Mediterrâneo, seguiu-se a  civilização atlântica, mais mercantilista e vocacionada para a supremacia do ter sobre o ser na consolidação do Poder.

A grande dispersão que se seguiu, ora atropelando, ora absorvendo a grande maioria das culturas por onde passou, teve também o reverso: vestiram-se povos autóctones enquanto que os colonizadores se iam despindo cada vez mais, artistas como Picasso encontraram inspiração estética em raízes africanos, e muitos outros factos será sempre possível mencionar, pese embora a relutância com que a actual "civilização ocidental" - ela também reduzida já a um mero conceito -  aceite a origem desses fenómenos.

No campo da Estética a Civilização Ocidental foi grande devedora da harmónica e insuperável divina proporção da estética grega. A verdade é que os gregos tinham a seu favor, para além de uma organização social que favorecia o lazer e, consequentemente, o puro pensar - sem outro objectivo que não fosse o pensar-se e interrogar-se sobre o pensado -, beneficiava de condições geográficas em que a Natureza se apresentava no mais belo e requintado estado de pureza. A leveza do céu, de onde emerge uma luz branca que proporciona doces variações tonais, a transparência dos mares, a quietude das ilhas, a beleza consciente que inspirava a vida das suas gentes, tudo concorria para que fosse possível a invenção de um Olimpo povoado de deuses com características humanas , quer amistosas quer guerreantes, que a sua condição de divindades avolumava. Mas em tudo imperava o culto do Belo e a razão da sua origem e aceitação. 

Foi essa a estética que orientou as nossas artes pláticas e, porque a visão é talvez o mais imediato dos sentidos, marcou as nossos gostos. Levámos séculos - por que não dizer: milénios - a "curtir" a beleza nos moldes em que tinha vindo a ser transmitida e usada , quer na concepção física do divino, quer na nobreza que aportava a descrições, estátuas e bustos dos heróis na diversidade dos seus campos.

O abandono do culto do Belo -tal como o reconhecemos e adoptámos, inclusivamente na Moral ,onde o Bom e o Belo se confundiam (não era concebível aceitar como belo um acto imoral ou amoral, associando-se desde logo o Mal à fealdade das bruxas e a beleza à serena bondade das fadas)  - tem, dentro do abandono e rejeição do contexto civilizacional do Ocidente, tido conseguido um percurso rápido. De repente o Belo, que começara a identificar com o "luxo" devido a uma opção quase exclusiva das élites, ultrapassou a decadência que enfermou todas as outras áreas de culto da sociedade dita ocidental. E, o que até então tinha sido considerado feio, passou a ser visto como uma discutível opção, que tanto poderia ter como conteúdo esse como o seu contrário. E, assim, chegámos onde chegámos!

Hoje, vendo o anúncio de um livralheco de banda desenhada - que, ao que parece, ainda que em versões mais saudáveis, entrou tristemente em moda e há que não perder a "onda"...- concluí que o mau-gosto deixara de ser apenas uma fatalidade e se propunha começar a fazer escola. O "album" - anunciado! - irá reproduzir-se e tratar o tema que lhe serve de título: "Um casal vulgar". E, creiam, é de vulgaridade que se trata! A capa - da autoria de um "gólfista"desenhador- apresenta o casal. Uma mulher avarinada, sem idade, de cabelo no ar e seios pendendo sobre onde se supõe seria a cintura, fugindo de um homenzinho entradote, atarracado, com um olhar espantado por detrás de grossas lentes, calças em saca-rolhas e o ar de quem ia saltar para cima da mulher que o mirava em fuga e violá-la...caso ela quisesse.

Apresentar assim um casal, por mais vulgar - subentendendo que a intenção é falar de um casal tipo - inclina-nos mais para um "casal ordinário" (será que o título foi escolhido em francês?) do que para ideia que temos de um casal normal, por mais simples e provinciano que o pensemos. Tudo ali é feio! Pode ser que na página dez, Deus se tenha compadecido deles - e dos leitores - e lhes um bebé bonito como o são todos os bebés, que se fosse vida real, teria que arcar pela vida fora com aquelas inóspitas criaturas. 

Isto, porém, é um fait divers. Ninguém é obrigado a comprar o album e poderá sempre deitá-lo fora ou usá-lo parcialmente para outros fins. O problema é que o "estilo" rompe barreiras onde a solidez do Bom/Belo se fragiliza. Temos hoje uma geração como talvez nunca tenhamos tido: jovens altos, escorreitos, conservando os traços de famílias bonitas de onde vieram, de  uma agradável politesse, alinhando na vulgaridade apenas quando não desejam passar despercebidos. Distinguem-se mesmo em farrapos porque até os farrabos neles são bonitos. Mas temos também, num crescendo, um prazer da extravagância que choca mas que cabe na regra de ouro deles em que "o que importa é ser feliz". O desmazelo, que aliás sempre foi atributo das famílias feias, como que querendo acrescentar algo que mostrasse que eram assim por opção e não por fatalidade, tornou-se um complemento de vida que por vezes se confunde erradamente com a falta de asseio.

É certo que nem todos os homens podem ter metro e meio de pernas, mãos musculadas, narizes aquilinos, e uns belos olhos resplandecentes, tal como nem todas as mulheres podem ter figuras esguias, belas cabeleiras, ollhos bonitos, pele de pessego, e um andar flutuante. Cada um é como é em cada uma das fases da vida. Mas fazer o elogio do feio, celebrá-lo, como se uma mulher  desaustinada e um homenzinho de perna curta, narizinho de boneco, mãos de donzela e olhos piscos fossem uma maioria de tal modo que nem se desse por que eram assim, será demais.

Num mundo em que tudo é feio, desde o modo de estar e se exibir, até ao baixo calão - a procolália invasora - passando pelo insuportável elogio em causa própria, como se cada um de nós fosse seguidor/praticante de Kant e desejasse que todos nos comportássemos como eles, vai uma cada vez menor distância. E isso, juntamente com a estranha lição de liberdade que pôs a "europa" em alvoroço e serviu de banquete a uma comunicação social que vai levar tempo a mastigá-la, a menos que outros actos libertadores se imponham, e que repete ad infinitum os acontecimentos, com a banalização do sagrado, com o desprezo pela privacidade, com um oportunismo sem pátria nem dono, com uma ânsia de poder que visa apenas o bem de alguns em "off" e lamentando em "on" a situação dos que não podem e não têm, não nos conduzirá - como às vezes possa parecer - a uma nova versão da Idade Média. Porque temos um tronco sólido a que falta uma cabeça.

A verdadeira beleza, inspirada como sempre na beleza da Criação, surge agora na retoma das culturas africanas, com as suas belas mulheres e homens atléticos, que se dispões a revitalizar as suas tradições. O interesse pelo que deixámos vai-se perdendo. Quanto às grandes civilizações orientais com quem traficamos, fazendo embora a cortesia demostrar um agrado, não descuram, bem o sabemos as suastradições e padões de beleza que pasam pelos jardins e por coisas aparentemente tão insignificantes como o momento do chá. São SIM! 

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