Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Petite Fleur

Petite Fleur

De "O ARCO DO TRIUNFO" - Inquietação

"O quarto estava brilhantemente iluminado. Lembrou-se de que o deixara assim. O leito cintilava como se tivesse nevado sobre ele, inesperadamente. Ravic apanhou a folha de papel que colocara na mesa antes de sair e na qual avisava que estaria de volta dentro de meia hora e rasgou-a em pedacinhos. Procurou alguma coisa para beber. Nada encontrou. Desceu novamente as escadas. O  porteiro não tinha calvados. Sómente conhaque. Ravic levou consigo a garrafa de Hennessy e outra de Vouvray. Conversou uns instantes com o porteiro, provando-lhe que Lulu II teria melhores probabilidades na próxima corrida para cavalos de dois anos, em Saint-Cloud. O espanhol Alvarez passou junto deles. Ravic notou que ainda coxeava ligeiramente. Comprou então um jornal e voltou para o quarto. Como custava passar uma noite daquelas! Quem não acredita em milagres no que diz respeito ao amor está perdido, dissera o advogado Arensen, em Berlim, em 1938. duas semanas depois foi mandado para um campo de concentração porque a sua bem-amada o denunciara. Ravic abriu a garrafa de Vouvray e pegou num volume de Platão que estava sobre a mesa. Momentos depois largou o livro e sentou-se junto da janela.

Lançou um olhar ao telefone. Aquele maldito aparelho negro! Não podia telefonar a Joan. Não sabia o número. Nem sequer onde morava. Não lhe perguntara e Joan nada lhe dissera. Provavelmente calara-se de propósito. Assim restar-lhe-ia sempre uma desculpa.

Bebeu um copo de vinho leve. Que idiotice !- pensou. Aguardo uma mulher que esteve aqui ainda hoje, pela mahã. Durante três meses e meio não a vi e não senti tanto a falta dela como agora, quando passou longe de mim apenas um dia. Teria sido mais simples se nunca a tivesse visto. Já estava habituado à situação. Agora...

Levantou-se. Não era isto também. Era a incerteza que o corroía. Era a desconfiança que nele se insinuara e que aumentava de hora para hora.

Ravic foi até à porta. Sabia que não estava fechada, porém quis certificar-se mais uma vez. Começou a ler o jornal; leu-o como através de um véu. Disturbios na Polónia. O choque inevitável. A reivindicação do Corredor, o tratado da Inglaterra e da França com a Polónia. A guerra que se aproximava. Deixou cair o jornal e apagou a luz. Deitado na escuridão esperou. não podia dormir. Voltou a acender a luz. A garrafa de Hennessy achava-se sobre a mesa. Não a abriu. Levantou-se e foi sentar-se de novo perto da janela. A noite estava fresca, o céu alto carregado de estrelas. Alguns gatos miavam nos pátios. Olhou para o leito. Sabia que não poderia conciliar o sono. Inútil tentar ler. Mal se recordava do que lera antes. Sair - eis a melhor solução. Mas onde iria? Isso pouco importava. A verdade porém é que não desejava sair. Queria saber alguma coisa. Com os diabos! Procurou então os comprimidos de soporífero no bolso. Iguais aos que fornecera ao ruivo Finkenstein. Engoliu os comprimidos. Mesmo assim duvidava que conseguisse dormir. Engoliu mais um. Se Joan viesse despertaria.

Ela não veio. Como também não veio na noite seguinte."

Erich Maria Remarque, "Arco do Triunfo", ed. Livros do Brasil

 

Escrito no que foi o prelúdio da segunda guerra mundial por um médico alemão exilado em Paris, onde exerce medicina cirúrgica clandestinamente, é o relato intímo e vivido numa cidade onde convivem todas as convicções políticas da Europa e todas as consequentes solidões e humanas inquietações. Pelo meio uma história de amor sem lugar, magistralmente interpretada por Ingrid Bergman e (creio...) Curd Jurgens. Um livro que vale a pena ler, ou reler. Da minha geração, quem não se lembrará deste filme!  

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D