De "O BANQUEIRO ANARQUISTA"
"Como podia eu tornar-me superior à força do dinheiro? O processo mais simples era afastar-me da esfera da sua influência, isto é, da civilização: ir para um campo comer raizes e beber água das nascentes, andar nu e viver como um animal. Mas isto, mesmo que não houvesse dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção social; não era mesmo combater; era fugir. Realmente quem se esquiva a travar um combate não é derrotado nele. Mas moralmente é derrotado porque não se bateu. O processo tinha que ser outro - um processo de combate e não de fuga.
Como subjugar o dinheiro combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania não evitando o seu encontro? O processo era só um - adquiri-lo, adquiri-lo em quantidade bastante para não lhe sentir a influència: e em quanto mais quantidade o adquirisse, tanto mais livre estaria da sua influência, Foi quando vi isto claramente, com toda a força da minha convicção de anarquista, e toda a minha lógica de homem lúcido, que entrei na fase actual - a comercial e bancária, meu amigo - do meu anarquismo.
(...)
- Porque escolheu vocè esta fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das outras... das intermédias?...
- Eu lhe digo. Eu meditei tudo isso. É claro que nos folhetos que eu lia havia todas essas teorias. Escolhi a teoria anarquista - a teoria extrema como você muito bem diz - pelas razões que lhe vou dizer em duas palavras.
Ficou um momento coisa nenhuma. Depois voltou-se para mim.
- O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepôem às realidades naturais - tudo, desde a família ao dinheiro, desde a religião ao estado. A gente nasce homem ou mulher - quero dizer nasce para ser, em adulto, homem ou mulher, não nasce , em boa justiça natural, nem para ser marido, nem para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês. É todas estas coisas em virtude das ficções sociais. Ora essas ficções sociais são más porquê? Porque são ficções, porque não são naturais! Se houvesse outras, que não fossem estas, seriam igualmente más, porque também seriam ficções, porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais.
(...)
-Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é ficção. A mais natural, neste nosso caso, erá aquela que pareça mais natural, aquela que estamos habituados. (Você compreende: o que é natural é o que é do instinto: e o que, não sendo instinto, se parece em tudo com o instinto é o hábito, Ora qual é a ficção social que constiui um hábito nosso? É o actual sistema, o sistema burguês!"
Fernando Pessoa, editorial Nova Ática
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