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Petite Fleur

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NÃO DESAFIARÁS O SENHOR TEU DEUS

Em plena Quaresma não será descabido lembrar a tentativa feita pelo demónio oferecendo a Jesus todas as riquezas do mundo se ele provasse que a protecção divina o isentaria de quaisquer danos por maior que fosse o risco assumido. Na minha nada teológica interpretação - não tenho formação para tal - Jesus não terá aceitado não apenas por uma questão de humano bom-senso como pela transcendente certeza de que a sua condição divina - e d'ela todos temos um pouco... - não se coadunava com desafios entre o Absoluto e o efémero.

Vem isto a propósito de uma meditação que li há pouco sobre a sociedade em que nos calhou viver, em que o imediato atropela o sentido das coisas e o Absoluto é um oito deitado onde repousa o infinito matemático. Porque será que somos assim e nos vamos "aperfeiçoando" neste estilo de vida onde a mentira prolifera e consegue mostrar-se como chave do êxito?

Creio que um dos motivos é uma educação fundamentada nos princípios do século dezanove em que o paradigma era uma burguesia sem pertença, que se queria longe das suas mais modestas origens e se esforçava por ser aceite por uma aristocracia que fora forçada a optar entre a ruina e a tolerância. Uma educação que estipulou como príncipios básicos três "mandamentos"  - que infelizmente ainda vigoram...- que funcionavam como prevenção contra aquele mundo por eles organizado. Eram eles:

1 - se o acusarem de alguma coisa negue sempre mesmo que seja verdade

2 - se fizer uma asneira não se desculpe nem emende. Persista na asneira até que ela seja aceite como apenas algo de diferente  e empenhe-se em que tenha êxito

3 - nunca julgue os outros - a menos que seja dentro do seu círculo...- para que não dê aso a que o julguem. 

É nesta base que foi educada e procede  grande parte da sociedade que temos. Uma sociedade que vive da sua astúcia , do receio e da ignorância alheios , e que prolifera em épocas de extrema vulnerabilidade.

Perguntamo-nos muitas vezes como tantas fatalidades, a que também não estamos imunes, recaem numa violência que confrange sobre famílias inteiras: doenças raras, acidentes, casamentos inadequados, divórcios, comportamentos desviantes, tudo parece confluir e, com pena misturada pelo receio de que venhamos a ser dos atingidos, damos por nós a pensar o porquê de tanta desgraça sobre gente que consideramos, tal como Job, "justa e temente a Deus".

Como poude Javé - que não é ainda o Deus compassivo que envia o seu filho para conviver com as misérias do mundo - consentir que o diabo se apossasse não da integridade física de Job mas de todas as suas conquistas: família, bens, dignidade, consideração dos amigos? É um mistério que persiste mesmo atendendo ao fim feliz, embora algo precipitado, que o Livro lhe atribui.

Seria Job perante Deus aquele homem que , em ambas as situações, era  perante o julgamento dos homens? Como teria Job chegado até ali, ainda que tendo apenas consciência do que de bem fizera e ignorando tudo o que o não fora? O largo tempo de introspecção que Javé lhe concede - e durante o qual Job enceta monólogo com Ele - somado às desgraças que o atingem é suficiente expiação para podermos acreditar que Javé o tenha recompensado.

Na nossa "linha da vida" deparamo-nos com casos semelhantes, ainda que sem essa dimensão biblíca . E o que sempre nos espanta é a reacção, mais social do que intíma, que leva os homens a desfiarem Deus, repetindo erros, ignorando sinais. Como se dissessem: "Aceito com humildade o que me dás mas vou provar-te que a minha força me permite contrariar o que aparenta serem os teus designios. Negarei a verdade até que ela seja aceite, insistirei nos erros que não terão merecido a tua aprovação até que se transformem em vitórias, ignorarei dos outros o direito de me julgarem. E ninguém, mas ninguém, tenha pena de mim!"

A verdade porém é que, sendo um procedimento socialmente correto que apenas poderá ser punido pela justiça de homens igualmente vulneráveis - que pode ir desde a punição social "tout court" à prisão perpétua ou à pena ee morte - outros há que transcendem a justiça dos homens e que decerto reacenderão vezes sem conta o monólogo de Job. 

 

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